sexta-feira, janeiro 13, 2006

Maldade Sociologica

Maldade sociológica (3)
Por E.Macamo

Não fica bem falar todo o tempo de cultura de responsabilidade e não dizer aos leitores como eles, por sua vez, podem avaliar as minhas ideias. O último parágrafo do artigo anterior faz uma proposta nesse sentido, mas é demasiado sucinto para ser de alguma utilidade. Por regra, quando tento fazer a análise da nossa sociedade procuro concentrar a minha atenção em fenómenos. Parto do princípio de que esses fenómenos são documentos do que realmente faz a nossa sociedade. Olho para as desculpas, para a indiferença, para as acusações de feitiçaria, etc. e procuro identificar neles momentos de produção da nossa sociedade. De vez em quando menciono nomes de pessoas, mais a título ilustrativo do que por interesse pelo que
fizeram ou disseram.

Nesta série de artigos continuo interessado em fenómenos, mais precisamente no fenómeno da responsabilidade. Ao contrário das outras ocasiões, porém, estou interessado em recuperar o sentido sociológico deste fenómeno a partir do que pessoas concretas dizem. Tendo em mente a
fraca cultura de debate que caracteriza a nossa esfera pública apresso-me a dizer que não tenho absolutamente nada contra nenhuma das pessoas que vou mencionar aqui. Muitas delas até nem conheço pessoalmente. Sobre algumas dessas pessoas pesam acusações de mau desempenho, algo que não estou em condições de avaliar nem, insisto, estou interessado em
investigar. Deixo isso às pessoas e instituições de direito. O que me interessa é apenas saber de que maneira o que essas pessoas dizem e as circunstâncias em que elas dizem o que dizem documenta ou não o fenómeno que me preocupa neste momento. Só isso.
A sociologia, de uma forma geral, ocupa-se daquilo que ela própria chama de acção social. Não vou entrar agora em definições do que isso é, mas penso que podemos aceitar como caracterização justa do conceito tudo quanto o leitor neste momento pensa que ele é: exactamente, o que as pessoas fazem. A questão que se coloca é de saber quando é que as pessoas fazem o que fazem? Só agem quando fazem coisas? E quando falam, estão também a agir? Em princípio sim, porque falar é um acto. Mas a pergunta que estou a tentar colocar é outra: o dito é um acto? Eu acho que sim, aliás, juntei-me a uma longa tradição na sociologia que acha estranho que uma parte tão importante da realidade social – o discurso – não faça parte do trabalho da ciência que se ocupa do social.
Já publiquei aqui uma série de artigos que se apoiavam na ideia de que existem actos de fala que consistem na comunicação de uma intenção bem como no desempenho. Não vou repetir essa abordagem desta vez, mas sim insistir num aspecto afim, nomeadamente que o discurso – a fala – é uma das formas mais elementares de produção da sociedade. Isto devia ser óbvio num País como o nosso onde falamos muito! Brincadeira. O discurso produz a sociedade porque ao falarmos fazemos referência a uma série de aspectos essenciais à nossa localização. Indiquei esses aspectos no artigo anterior, mas volto a repeti-los para ver se fica tudo ainda mais claro.
Apoio-me em categorias empregues por um psicólogo social de nome Herbert Clark. Em minha opinião, elas são muito mais simples de perceber do que o arsenal teórico que a sociologia que se ocupa destas coisas, a etnometodologia e o interacionismo simbólico, emprega. Mas a ideia é a
mesma: quando as pessoas falam estão a agir no sentido sociológico do termo, isto é estão a produzir o social. Herbert Clark identifica quatro elementos constitutivos do discurso como acção. O primeiro elemento é o que ele chama de base comum. A ideia aqui é simples. Entre nós quando alguém diz “vamos combater a corrupção”, ninguém em plena posse das suas faculdades mentais vai retorquir “porquê?”. A não ser que seja sociólogo.
Partimos simplesmente da ideia de que toda a gente considera a corrupção um mal que deve ser combatido. Até certo ponto, portanto, nem é preciso dizer “vamos combater a corrupção”, pois isso é mais do que óbvio. O interesse sociológico deste elemento consiste precisamente na revelação do que levou as pessoas a chegarem a este consenso. Uma coisa que a análise sociológica pode mostrar, por exemplo, é que há problemas neste consenso, um dos quais consiste na ideia de que a corrupção nem sempre é má e, se calhar, nem sempre precisa de ser combatida. No nosso País o uso deste slógan corresponde em grande medida ao processo de disciplinarização a que nos sujeitamos perante os que nos ajudam.
O segundo elemento é o contexto em que falamos. Para quem falamos? Quem nos ouve? Porque nos dirigimos a essas pessoas? Este elemento remete-nos para os espaços dentro dos quais nos movimentamos, os nossos círculos de convivência. Será que a frase “vamos combater a corrupção” cai da mesma maneira no partido, no parlamento, na barraca, em casa e no jornal? Porque não? Estas interrogações obrigam-nos a olhar a sociedade mais de perto. O terceiro elemento está ligado ao segundo. Quando falamos não estamos apenas envolvidos num empreendimento colectivo, por assim dizer, estamos também a criar a nossa audiência. Fazemos isto através da forma como empacotamos a mensagem. O que dizemos tem que ter um efeito e, para isso, precisamos de saber como dizê-lo. Aqui também podemos ver como o discurso
nos devolve à sociedade. Porque certas coisas têm de ser ditas de uma certa maneira para poderem ter o impacto desejado? Porque as pessoas partem do princípio de que só dizendo coisas de certa maneira é que elas terão o impacto desejado? Finalmente, existe o elemento da coordenação do sentido. Quando falamos não dizemos tudo. Aqui intervém, é claro, o elemento da base comum de entendimento, mas também a própria negociação do sentido. Que razões temos nós para subentender coisas? Que valores e normas predispõem as pessoas a aceitarem certos sentidos e a rejeitarem outros?

Bom, é com base nestas ideias sucintas que procuro interrogar o que as pessoas dizem. Há muita maldade no meio de tudo isto, mas é pelo bem do debate público. Não sei se isto ajuda em alguma coisa, mas é a minha maneira de pôr as cartas na mesa.

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quinta-feira, janeiro 12, 2006

Somos transparentes?

Por:
jekyl.hide@hotmail.com>


Caros compatriotas,

Para que as discussões não rodem sempre sobre os mesmos temas venho propôr-vos um assunto que é muito pouco discutido publicamente em Moçambique.

Agradeço que leiam o seguinte texto e se gostarem façam-no circular por quem possa interessar.

Um abraço bem moçambicano

Somos transparentes?>>

> >

Muitos textos que abordam a questão da homossexualidade tocam na questão da invisibilidade. Talvez, se pretendermos ser mais precisos, em vez de invisibilidade poderemos falar de transparência. Invisíveis é quando não conseguimos ver, transparentes é quando vemos mas é como se não víssemos porque, tal como o vidro, a luz passa através deles.>>

> >

E são transparentes as lésbicas e os gays moçambicanos que contribuíram para a independência deste país, para além dos que actualmente, continuando transparentes, participam no desenvolvimento social, económico, político, artístico e de todas as diferentes áreas da sociedade moçambicana. Só não vê quem não quer ver. Aliás, a táctica da transparência é eu "não sei" quem tu és e tu não me dizes quem és.


Mas voltando a falar de igualdade, a nossa constituição, a constituição de Moçambique, que é considerada uma das mais avançadas de África, aborda esse assunto em mais de um artigo.

ARTIGO 35
Princípio da universalidade e igualdade

"Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política".


Com base no que temos vindo a falar, qualquer pessoa minimamente atenta pode notar que no artigo 35 falta qualquer "coisa". Pois é, o que dizer do princípio de universalidade e igualdade para o caso da orientação sexual? Serão os homossexuais iguais aos heterossexuais perante a lei?



Não vem nada escrito sobre esse ponto no artigo 35! Porquê?


Por exemplo, um indivíduo rouba, assalta, mata e esfola, em série. É preso, julgado e condenado à pena máxima. Mesmo na cadeia esse indivíduo poderá usufruir do direito de casar com alguém do sexo oposto. Mas se forem dois cidadãos moçambicanos, homossexuais, duas mulheres ou dois homens adultos, por muito trabalhadores, honestos e educados que eles sejam, mesmo que o desejem esse direito é-lhes actualmente negado no nosso país! Quem está convencido que esta situação está correcta?


Artigo 44


(Deveres para com os seus semelhantes)

"Todo o cidadão tem o dever de respeitar e considerar os seus semelhantes, sem discriminação de qualquer espécie e de manter com eles relações que permitam promover, salvaguardar e reforçar o respeito, a tolerância recíproca e a solidariedade".


Sejamos "open mind", tenhamos a mente aberta e analisemos as frases seguintes:



O casamento é uma união entre um homem e uma mulher.
O casamento é uma união entre duas pessoas.
Os conhecedores das leis poderão concerteza fazer uma explanação mais profunda e consequentemente, produzir um esclarecimento mais idóneo. Porém, até mesmo nós os leigos, olhando para o "princípio da universalidade e igualdade", mencionado no artigo 35 e do "princípio da não discriminação de qualquer espécie", do artigo 44, facilmente concluímos que uma das frases acima constitui violação da constituição. Dito por outras palavras, todos já descobrimos qual o texto que exprime discriminação e qual o texto que exprime igualdade real.


Então, porque não escolher o melhor, mais justo e mais abrangente destes dois textos para a lei de família do nosso país?


Jekyl

jekyl.hide@hotmail.com


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Estragaram a nossa pessoa (2)
Por: Elisio Macamo

A sociologia ensinou-me a desconfiar de muita coisa. Ao mesmo tempo, porém, acautelou-me a não ficar surpreendido por tudo e por nada. A espécie humana é curiosa e é capaz de tudo. Deus escreve direito em linhas tortas porque os homens insistem em torcer as linhas. Numa das minhas andanças pelo campo tive um reencontro inicialmente engraçado com um camponês. Durante a conversa que mantivemos ele contou-me que o chefe do posto administrativo que eu conhecera em ocasiões anteriores tinha sido afastado do lugar. Achei interessante. Perguntei porquê, embora já suspeitasse. Disse-me que tinha desaparecido dinheiro dos cofres do posto. Mesmo assim, a minha curiosidade aumentou.

Onde está ele agora? O camponês respondeu-me que o chefe de posto destituído por razões ligadas ao desaparecimento de dinheiros públicos voltara à administração distrital. Achei estranho. Perguntei se houvera algum processo disciplinar, embora já antecipasse a resposta. Não se sabe, disse o camponês, ao que parece é muito provável que não tenha sido ele a desviar os fundos. De qualquer maneira, a administração distrital achou por bem trazer o indivíduo de volta à sede. Comecei a ficar lívido, embora o pobre camponês não tivesse nada a ver com o assunto. Perguntei se ele se sentia à vontade sabendo que um indivíduo sem, aparentemente, sentido de responsabilidade estava à solta na administração. O camponês não perdeu a paciência, isso é coisa de sociólogo mal preparado.

Ele disse-me que a administração distrital não podia fazer mais nada porque o indivíduo em questão não era, originariamente, do quadro da administração. Não percebi e o camponês viu pela expressão na minha cara que os títulos académicos tinham chegado ao limite da sua utilidade. O chefe de posto destituído – "saneado" como dizia a Frelimo revolucionária – só podia continuar a trabalhar na administração porque quando foi indicado chefe de posto foi em comissão de serviço. Continuei a não perceber. É assim, explicou o paciente camponês, se a administração distrital expulsasse o indivíduo em questão as pessoas haviam de achar estranho. Porquê, quase que gritei. Bom, disse o camponês com o ar condescendente de quem se resigna perante a falta de imaginação dos citadinos, a ser expulso ele teria que ser devolvido à sua empresa inicial. Não vi problema com isso. O problema, prosseguiu o meu interlocutor, é que a empresa vai dizer: quando vocês vieram buscar aqui o nosso homem ele não era corrupto; o que fizeram com ele?

Fiquei sem palavra.

Das duas uma: Ou o camponês está a falar a partir de um sentido de cultura que não partilho ou então, mais tarde cheguei a esta conclusão, há sérios problemas com a forma como pensamos a noção de responsabilidade. Até porque acho bonita a ideia de responsabilizar empresas pela degenerescência moral dos seus empregados. Mas o que é bonito não é necessariamente bom. Muitas vezes até é mau. Mau mesmo. Quando vocês vieram buscar aqui o nosso homem ele não era corrupto; o que fizeram com ele? Como, perguntei aos meus botões, com concepções como esta introduzir maior responsabilização na acção política pública? De que maneira é que as populações prejudicadas por este chefe do posto administrativo podem pedir contas a um indivíduo que não actuou por conta própria, mas sim em resposta à má educação que lhe foi dada no novo emprego?

A partir daqui as coisas vão começar a aquecer, por isso peço atenção. O que dizemos apresenta quatro elementos que são constitutivos da realidade social. Primeiro, revela uma base comum de entendimento que nos permite economizar palavras. No caso da conversa com o camponês, a coisa falhou. Eu não sabia que não se pode expulsar alguém por má conduta, sobretudo quando esse alguém vem de uma outra empresa. Segundo, quando a base comum falha podemos recorrer ao facto de que o que dizemos fazer parte de um empreendimento conjunto – sim, "joint-venture". Estamos a falar para outras pessoas e temos que nos fazer entender. O camponês tentou. Terceiro, ao tentarmos fazer-mo-nos entender criamos a nossa própria audiência, muitas vezes a partir de formas concretas de fazer passar a mensagem. O camponês não se maçou com isto, pois julgo que ao meio da conversa ele chegou à conclusão de que eu era um caso perdido. Finalmente, o que dizemos subentende muita coisa, o que torna necessário um trabalho aturado de coordenação do sentido. Nem eu, nem o camponês estávamos ainda com pachorra para tentar isto. No próximo artigo vou tentar desenvolver isto mais um bocado e depois dar largas à minha imaginação.

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quarta-feira, janeiro 11, 2006

Por uma cultura de responsabilidade (1)

Por uma cultura de responsabilidade

Pela boca morre o peixe (1)
Por E. Macamo

Há muito tempo que deixei de acreditar na ideia de que o desenvolvimento é algo que tem a ver com o crescimento económico e a melhoria dos indicadores sócio-económicos. Isto é capaz de ser uma heresia nos tempos que correm. Todavia, algo me diz que há algum proveito em resistir à associação entre desenvolvimento e crescimento económico. Há duas razões que me parecem sustentar a necessidade desta resistência. A primeira é de que só o crescimento económico por si não significa o fim da pobreza, absoluta ou não. Significa apenas que alguns vão ficar mais ricos, numa primeira fase. O mais relevante nessa associação seriam as políticas de redistribuição da riqueza. A segunda razão apoia-se no receio de que essa associação seja usada pelos nossos políticos para justificarem a sua incapacidade de tornar o desenvolvimento realidade. Na verdade, quando se toma em consideração o nosso ponto de partida é quase impossível imaginar que o nosso País tenha alguma hipótese de desenvolvimento. Está tudo contra. Nessas circunstâncias, a insistência na ideia de que o desenvolvimento tem a ver com o crescimento económico seria uma maneira fortuita de dizer, com outras palavras, que a missão é impossível.
Seria interessante continuar a discussão destas razões. Contudo, interessa-me um outro assunto, nomeadamente a responsabilidade. Em cada uma das razões apresentadas a questão da responsabilidade desempenha um papel importante. O crescimento económico não estabelece nenhum vínculo entre os eleitores e os seus representantes. As políticas de redistribuição sim. Dito doutro modo, o que dá substância à política é a conversa entre os que devem decidir e executar, por um lado, e os que depositam a sua confiança nos decisores e executores. Igualmente, a pior maneira de fazer política é formular metas nebulosas. O desenvolvimento, a eliminação da pobreza absoluta, o combate ao espírito do deixa-andar, à corrupção, ao burocratismo e à criminalidade são metas nebulosas.
A intenção por detrás da formulação destas metas é nobre e legítima, disso não há dúvidas. A experiência dos primeiros meses de governação de Armando Guebuza prova, contudo, que não é por aqui que a política deve trilhar. As rusgas ministeriais não vão resolver muita coisa se não forem interrogados os mecanismos institucionais que deviam impedir o espírito do deixa-andar. A substituição de “corruptos” dos lugares de chefia não vai resolver muita coisa se ao mesmo tempo não se procurar saber o que falhou no funcionamento do aparelho do estado para que essa gente ficasse tanto tempo no poleiro e fizesse tanto estrago. Ultimamente, parece que o próprio Presidente se apercebeu deste problema, pois tem vindo a insistir na necessidade de definição de metas claras para se poder avaliar o seu cumprimento ou não. Vamos orar para que insista nesta tecla com o mesmo fervor missionário que emprestou ao combate ao espírito do deixa-andar.
O desenvolvimento está nas pequenas coisas da vida. Lembro-me de já ter escrito isto. No respeito pelos outros, pela coisa pública e, acima de tudo, na responsabilidade. Os que nos querem ajudar falam de “boa governação” ressuscitando, dessa forma, a maneira da Frelimo revolucionária de mudar o mundo com chavões. É verdade que boa governação é boa coisa, mas lá está, é coisa nebulosa. É democracia? É transparência? É boa política económica? É ajustamento estrutural? E se é tudo isso, para que precisamos das outras palavras? Estou a fugir do tema, mas só mais uma achega: Boa governação cria o vínculo de responsabilidade entre a nossa classe política e os que nos ajudam, não entre nós e a nossa classe política.
Penso que uma maneira útil de definir o desenvolvimento nas condições actuais do nosso País consiste em reduzi-lo à capacidade de responsabilizar os que têm o mandato do povo pelo que dizem e fazem. Infelizmente, o nosso sistema político é fraco neste aspecto. É um sistema político para o inglês ver. Os políticos – no poder e na oposição – dizem o que lhes dá na gana, fazem o que lhes apetece, mas quando chega o momento que devia ser da verdade, a saber, as eleições, não parece ser o seu desempenho o critério principal para decidir se devem continuar a ter a confiança dos eleitores. É outra coisa que ainda não consegui entender e sobre a qual vou tentar me debruçar nesta reflexão.
Interessa-me, contudo, olhar com um pouco de atenção para a substância do que se diz no nosso debate político. Talvez resida aí a explicação do que emperra a nossa máquina política. O que se diz tem um interesse sociológico muito grande e é por aí que me vou aventurar. Em sociologia existem duas posições fundamentais. Uma é de opinião que o social existe e age sobre o indivíduo. Apega-se a instituições como a família, a etnia, o Estado, o partido, etc. para dizer que o indivíduo age dentro dos limites estabelecidos por elas. A outra posição, a que orienta o meu próprio trabalho, parte do princípio de que o social é o que os indivíduos fazem no seu dia a dia. Não tem existência anterior ao indivíduo, antes pelo contrário, é produzido repetidamente pelo indivíduo. A família existe porque todos os dias há homens apostados em serem maridos, mulheres apostadas em serem esposas, crianças apostadas em serem filhos, e por aí fora. Quando o homem ou a mulher decidem que chegou o momento de pôr termo à farsa a família deixa de existir. Bom, pelo menos essa família. As outras continuam da mesma maneira, sustentadas por legislação que as reconhece como algo fundamental à existência da nossa sociedade. Mas aí também isso só é possível porque temos advogados de família, tribunais, tipos de impostos, abonos familiares, etc. apostados em investir na ideia da existência da família.
Nada é natural, tudo resulta do que nós fazemos. Vem daqui a importância do que as pessoas dizem. Ao falarem estão, fundamentalmente, a documentar a forma como elas produzem o social. O que as pessoas dizem não é, neste sentido, inocente. Não incrimina, mas revela o que as pessoas pensam do meio em que vivem e, acima de tudo, como elas participam na produção desse meio. Proponho, portanto, uma série de artigos em que me vou debruçar sobre afirmações e, com muita maldade – peço desde já desculpas por isso – vou procurar trazer à superfície o tipo de atitudes que nos impedem de emprestar ao nosso sistema político a cultura de responsabilidade de que tanto precisa para poder fazer o tal desenvolvimento. No fim de tudo vou recuperar a questão da responsabilidade. O peixe pode morrer pela boca, mas é pelo bem dos Homens que o vão consumir. Espero que a denúncia do que dizemos contribua para o nosso bem.

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Por uma cultura de responsabilidade

Por uma cultura de responsabilidade

Pela boca morre o peixe (1)
Por E. Macamo

Há muito tempo que deixei de acreditar na ideia de que o desenvolvimento é algo que tem a ver com o crescimento económico e a melhoria dos indicadores sócio-económicos. Isto é capaz de ser uma heresia nos tempos que correm. Todavia, algo me diz que há algum proveito em resistir à associação entre desenvolvimento e crescimento económico. Há duas razões que me parecem sustentar a necessidade desta resistência. A primeira é de que só o crescimento económico por si não significa o fim da pobreza, absoluta ou não. Significa apenas que alguns vão ficar mais ricos, numa primeira fase. O mais relevante nessa associação seriam as políticas de redistribuição da riqueza. A segunda razão apoia-se no receio de que essa associação seja usada pelos nossos políticos para justificarem a sua incapacidade de tornar o desenvolvimento realidade. Na verdade, quando se toma em consideração o nosso ponto de partida é quase impossível imaginar que o nosso País tenha alguma hipótese de desenvolvimento. Está tudo contra. Nessas circunstâncias, a insistência na ideia de que o desenvolvimento tem a ver com o crescimento económico seria uma maneira fortuita de dizer, com outras palavras, que a missão é impossível.
Seria interessante continuar a discussão destas razões. Contudo, interessa-me um outro assunto, nomeadamente a responsabilidade. Em cada uma das razões apresentadas a questão da responsabilidade desempenha um papel importante. O crescimento económico não estabelece nenhum vínculo entre os eleitores e os seus representantes. As políticas de redistribuição sim. Dito doutro modo, o que dá substância à política é a conversa entre os que devem decidir e executar, por um lado, e os que depositam a sua confiança nos decisores e executores. Igualmente, a pior maneira de fazer política é formular metas nebulosas. O desenvolvimento, a eliminação da pobreza absoluta, o combate ao espírito do deixa-andar, à corrupção, ao burocratismo e à criminalidade são metas nebulosas.
A intenção por detrás da formulação destas metas é nobre e legítima, disso não há dúvidas. A experiência dos primeiros meses de governação de Armando Guebuza prova, contudo, que não é por aqui que a política deve trilhar. As rusgas ministeriais não vão resolver muita coisa se não forem interrogados os mecanismos institucionais que deviam impedir o espírito do deixa-andar. A substituição de “corruptos” dos lugares de chefia não vai resolver muita coisa se ao mesmo tempo não se procurar saber o que falhou no funcionamento do aparelho do estado para que essa gente ficasse tanto tempo no poleiro e fizesse tanto estrago. Ultimamente, parece que o próprio Presidente se apercebeu deste problema, pois tem vindo a insistir na necessidade de definição de metas claras para se poder avaliar o seu cumprimento ou não. Vamos orar para que insista nesta tecla com o mesmo fervor missionário que emprestou ao combate ao espírito do deixa-andar.
O desenvolvimento está nas pequenas coisas da vida. Lembro-me de já ter escrito isto. No respeito pelos outros, pela coisa pública e, acima de tudo, na responsabilidade. Os que nos querem ajudar falam de “boa governação” ressuscitando, dessa forma, a maneira da Frelimo revolucionária de mudar o mundo com chavões. É verdade que boa governação é boa coisa, mas lá está, é coisa nebulosa. É democracia? É transparência? É boa política económica? É ajustamento estrutural? E se é tudo isso, para que precisamos das outras palavras? Estou a fugir do tema, mas só mais uma achega: Boa governação cria o vínculo de responsabilidade entre a nossa classe política e os que nos ajudam, não entre nós e a nossa classe política.
Penso que uma maneira útil de definir o desenvolvimento nas condições actuais do nosso País consiste em reduzi-lo à capacidade de responsabilizar os que têm o mandato do povo pelo que dizem e fazem. Infelizmente, o nosso sistema político é fraco neste aspecto. É um sistema político para o inglês ver. Os políticos – no poder e na oposição – dizem o que lhes dá na gana, fazem o que lhes apetece, mas quando chega o momento que devia ser da verdade, a saber, as eleições, não parece ser o seu desempenho o critério principal para decidir se devem continuar a ter a confiança dos eleitores. É outra coisa que ainda não consegui entender e sobre a qual vou tentar me debruçar nesta reflexão.
Interessa-me, contudo, olhar com um pouco de atenção para a substância do que se diz no nosso debate político. Talvez resida aí a explicação do que emperra a nossa máquina política. O que se diz tem um interesse sociológico muito grande e é por aí que me vou aventurar. Em sociologia existem duas posições fundamentais. Uma é de opinião que o social existe e age sobre o indivíduo. Apega-se a instituições como a família, a etnia, o Estado, o partido, etc. para dizer que o indivíduo age dentro dos limites estabelecidos por elas. A outra posição, a que orienta o meu próprio trabalho, parte do princípio de que o social é o que os indivíduos fazem no seu dia a dia. Não tem existência anterior ao indivíduo, antes pelo contrário, é produzido repetidamente pelo indivíduo. A família existe porque todos os dias há homens apostados em serem maridos, mulheres apostadas em serem esposas, crianças apostadas em serem filhos, e por aí fora. Quando o homem ou a mulher decidem que chegou o momento de pôr termo à farsa a família deixa de existir. Bom, pelo menos essa família. As outras continuam da mesma maneira, sustentadas por legislação que as reconhece como algo fundamental à existência da nossa sociedade. Mas aí também isso só é possível porque temos advogados de família, tribunais, tipos de impostos, abonos familiares, etc. apostados em investir na ideia da existência da família.
Nada é natural, tudo resulta do que nós fazemos. Vem daqui a importância do que as pessoas dizem. Ao falarem estão, fundamentalmente, a documentar a forma como elas produzem o social. O que as pessoas dizem não é, neste sentido, inocente. Não incrimina, mas revela o que as pessoas pensam do meio em que vivem e, acima de tudo, como elas participam na produção desse meio. Proponho, portanto, uma série de artigos em que me vou debruçar sobre afirmações e, com muita maldade – peço desde já desculpas por isso – vou procurar trazer à superfície o tipo de atitudes que nos impedem de emprestar ao nosso sistema político a cultura de responsabilidade de que tanto precisa para poder fazer o tal desenvolvimento. No fim de tudo vou recuperar a questão da responsabilidade. O peixe pode morrer pela boca, mas é pelo bem dos Homens que o vão consumir. Espero que a denúncia do que dizemos contribua para o nosso bem.
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