sexta-feira, janeiro 13, 2006

Maldade Sociologica

Maldade sociológica (3)
Por E.Macamo

Não fica bem falar todo o tempo de cultura de responsabilidade e não dizer aos leitores como eles, por sua vez, podem avaliar as minhas ideias. O último parágrafo do artigo anterior faz uma proposta nesse sentido, mas é demasiado sucinto para ser de alguma utilidade. Por regra, quando tento fazer a análise da nossa sociedade procuro concentrar a minha atenção em fenómenos. Parto do princípio de que esses fenómenos são documentos do que realmente faz a nossa sociedade. Olho para as desculpas, para a indiferença, para as acusações de feitiçaria, etc. e procuro identificar neles momentos de produção da nossa sociedade. De vez em quando menciono nomes de pessoas, mais a título ilustrativo do que por interesse pelo que
fizeram ou disseram.

Nesta série de artigos continuo interessado em fenómenos, mais precisamente no fenómeno da responsabilidade. Ao contrário das outras ocasiões, porém, estou interessado em recuperar o sentido sociológico deste fenómeno a partir do que pessoas concretas dizem. Tendo em mente a
fraca cultura de debate que caracteriza a nossa esfera pública apresso-me a dizer que não tenho absolutamente nada contra nenhuma das pessoas que vou mencionar aqui. Muitas delas até nem conheço pessoalmente. Sobre algumas dessas pessoas pesam acusações de mau desempenho, algo que não estou em condições de avaliar nem, insisto, estou interessado em
investigar. Deixo isso às pessoas e instituições de direito. O que me interessa é apenas saber de que maneira o que essas pessoas dizem e as circunstâncias em que elas dizem o que dizem documenta ou não o fenómeno que me preocupa neste momento. Só isso.
A sociologia, de uma forma geral, ocupa-se daquilo que ela própria chama de acção social. Não vou entrar agora em definições do que isso é, mas penso que podemos aceitar como caracterização justa do conceito tudo quanto o leitor neste momento pensa que ele é: exactamente, o que as pessoas fazem. A questão que se coloca é de saber quando é que as pessoas fazem o que fazem? Só agem quando fazem coisas? E quando falam, estão também a agir? Em princípio sim, porque falar é um acto. Mas a pergunta que estou a tentar colocar é outra: o dito é um acto? Eu acho que sim, aliás, juntei-me a uma longa tradição na sociologia que acha estranho que uma parte tão importante da realidade social – o discurso – não faça parte do trabalho da ciência que se ocupa do social.
Já publiquei aqui uma série de artigos que se apoiavam na ideia de que existem actos de fala que consistem na comunicação de uma intenção bem como no desempenho. Não vou repetir essa abordagem desta vez, mas sim insistir num aspecto afim, nomeadamente que o discurso – a fala – é uma das formas mais elementares de produção da sociedade. Isto devia ser óbvio num País como o nosso onde falamos muito! Brincadeira. O discurso produz a sociedade porque ao falarmos fazemos referência a uma série de aspectos essenciais à nossa localização. Indiquei esses aspectos no artigo anterior, mas volto a repeti-los para ver se fica tudo ainda mais claro.
Apoio-me em categorias empregues por um psicólogo social de nome Herbert Clark. Em minha opinião, elas são muito mais simples de perceber do que o arsenal teórico que a sociologia que se ocupa destas coisas, a etnometodologia e o interacionismo simbólico, emprega. Mas a ideia é a
mesma: quando as pessoas falam estão a agir no sentido sociológico do termo, isto é estão a produzir o social. Herbert Clark identifica quatro elementos constitutivos do discurso como acção. O primeiro elemento é o que ele chama de base comum. A ideia aqui é simples. Entre nós quando alguém diz “vamos combater a corrupção”, ninguém em plena posse das suas faculdades mentais vai retorquir “porquê?”. A não ser que seja sociólogo.
Partimos simplesmente da ideia de que toda a gente considera a corrupção um mal que deve ser combatido. Até certo ponto, portanto, nem é preciso dizer “vamos combater a corrupção”, pois isso é mais do que óbvio. O interesse sociológico deste elemento consiste precisamente na revelação do que levou as pessoas a chegarem a este consenso. Uma coisa que a análise sociológica pode mostrar, por exemplo, é que há problemas neste consenso, um dos quais consiste na ideia de que a corrupção nem sempre é má e, se calhar, nem sempre precisa de ser combatida. No nosso País o uso deste slógan corresponde em grande medida ao processo de disciplinarização a que nos sujeitamos perante os que nos ajudam.
O segundo elemento é o contexto em que falamos. Para quem falamos? Quem nos ouve? Porque nos dirigimos a essas pessoas? Este elemento remete-nos para os espaços dentro dos quais nos movimentamos, os nossos círculos de convivência. Será que a frase “vamos combater a corrupção” cai da mesma maneira no partido, no parlamento, na barraca, em casa e no jornal? Porque não? Estas interrogações obrigam-nos a olhar a sociedade mais de perto. O terceiro elemento está ligado ao segundo. Quando falamos não estamos apenas envolvidos num empreendimento colectivo, por assim dizer, estamos também a criar a nossa audiência. Fazemos isto através da forma como empacotamos a mensagem. O que dizemos tem que ter um efeito e, para isso, precisamos de saber como dizê-lo. Aqui também podemos ver como o discurso
nos devolve à sociedade. Porque certas coisas têm de ser ditas de uma certa maneira para poderem ter o impacto desejado? Porque as pessoas partem do princípio de que só dizendo coisas de certa maneira é que elas terão o impacto desejado? Finalmente, existe o elemento da coordenação do sentido. Quando falamos não dizemos tudo. Aqui intervém, é claro, o elemento da base comum de entendimento, mas também a própria negociação do sentido. Que razões temos nós para subentender coisas? Que valores e normas predispõem as pessoas a aceitarem certos sentidos e a rejeitarem outros?

Bom, é com base nestas ideias sucintas que procuro interrogar o que as pessoas dizem. Há muita maldade no meio de tudo isto, mas é pelo bem do debate público. Não sei se isto ajuda em alguma coisa, mas é a minha maneira de pôr as cartas na mesa.

MocambiqueOnline Blog

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