terça-feira, fevereiro 07, 2006

A Responsabilidade

A responsabilidade (10)

Muitos de nós atribuímos uma importância desmesurada à nossa própria pessoa, ao tamanho da nossa conta bancária, à nossa etnia, ao nosso partido, ao nosso líder, à nossa família, aos nossos amigos, enfim, a tudo quanto nos define como pessoas. E isso é legítimo e bom assim. Contudo, a verdadeira medida da nossa condição de pessoas não reside nos artefactos que pensamos serem essenciais à nossa identidade. A verdadeira medida da nossa personalidade consiste no facto de partilharmos o mundo com outras pessoas. É a presença dos outros que torna a nossa existência social.
Viver, portanto, significa na sua essência ter em atenção o facto de que não estamos a sós. Temos que ser capazes de reagir à presença dos outros. Isto equivale a dizer que a reacção à presença dos outros é o que dá sentido à nossa vida. Dito doutro modo, é à responsabilidade que devemos atribuir máxima importância. Entendo a noção de responsabilidade de duas maneiras. A primeira parece-me elementar. Ela consiste na ideia de que temos que ser capazes de assumir as consequências do que fazemos. Ao fazermos isso estamos a indicar da forma mais social possível que reconhecemos a presença de outros na nossa vida. A segunda parece complicada, mas resulta logicamente da primeira. Responsabilidade é a capacidade de dialogar com outros no sentido de justificar as nossas acções e dizeres.
A filosofia política deve ter maneiras mais complicadas de expôr o que tentei expôr aqui. Provavelmente devia ter optado por aí para não ser entendido e para que as coisas continuem na mesma. Talvez. Espero ter sido o mais claro e directo possível. Nenhuma sociedade pode existir sem cultura de responsabilidade. Na verdade, de certa maneira o sistema político representa o lado institucional da cultura de responsabilidade. Só uma sociedade feita de indivíduos que têm consciência do que fazem no seu dia a dia, sabem justificar o que fazem, sabem dizer aos outros como o seu desempenho deve ser avaliado e estão preparados para justificar esses critérios, é que tem probabilidades de sobreviver, pelo menos a médio prazo.
Lamento ter de concluir que o nosso País ainda está longe disso. Os políticos não são culpados por isso. Os intelectuais também não. Muito menos o povo. Todos nós, sem nenhuma excepção, temos a capacidade de nos indignarmos pelo que anda mal, e fazêmo-lo em conversas de barracas, em salas de aulas, em editoriais abrasivos, em discursos políticos, em conversas de gabinete, na rua, na igreja, enfim, em todo o lado onde o ser social em nós ainda palpita. Vemos o País atolado na inércia induzida por funcionários públicos indiferentes e incompetentes, por políticos ainda com dificuldades de entender o verdadeiro significado das estatísticas internacionais que colocam o nosso País como uma das lanternas vermelhas, por académicos que veem no estudante um mal necessário, por intelectuais que sucubem ao canto sedutor do argumento fácil, por homens de negócios que ainda não perceberam que o lucro sabe ainda melhor quando investido de forma produtiva, por uma população que quase deixou de sonhar, farta de promessas vãs, enfim, somos espectadores de nós próprios, audiência, actores e críticos, tudo ao mesmo tempo.
Estamos entregues a nós próprios, às nossas fraquezas, mas sobretudo à nossa falta de imaginação. É aqui onde queria chegar. Precisamos de imaginação, muita mesmo. Algo me diz, embora não esteja preparado para defender essa opinião agora, que a falta de imaginação é o maior entrave ao surgimento de uma cultura de responsabilidade. A falta de imaginação não nos permite distinguir o essencial do supérfluo, impede-nos de separar táctica e estratégia, impele-nos ao accionismo irreflectido. Tenho consciência de que deixei de ser objectivo há vários parágrafos, passei para o desabafo, ao mesmo tempo que mantenho viva a esperança de poder influenciar algumas pessoas a verem na cultura da responsabilidade a verdadeira razão da nossa existência. Seria bom podermos acabar com a pobreza absoluta, com o espírito – e a prática – do deixa-andar, com a criminalidade, com a corrupção, com o burocratismo, com a apatia, a inércia, as doenças, as desigualidades, as assimetrias, a exclusão social e tudo quanto choca com o nosso sentido de seres morais. Seria mesmo bom. Mas sem cultura de responsabilidade, sem o hábito de formular critérios de desempenho, de avaliação e de procedimento burocrático como é que saberemos que a pobreza absoluta e o espírito do deixa-andar já foram eliminados? Como é que vamos saber que estamos no bom caminho? Como é que podemos corrigir falhas - partindo do princípio de que seremos capazes de as detectar? Como?
Era tão bom que o novo ano trouxesse ao lado das acusações de corrupção e conspirações, incompetência e falta de patriotismo mais discussão sobre os critérios de desempenho, sobretudo no parlamento, onde o povo se devia reencontrar. Era tão bom que cada cessação de funções fosse acompanhada de uma discussão – também para o próprio bem das pessoas visadas – sobre o desempenho, sobre o quadro institucional em que essas pessoas tiveram de trabalhar, sobre os constrangimentos e, acima de tudo, sobre o que em face do constatado será feito para que o desempenho seja melhor. Era tão bom que o novo ano nos tornasse mais responsáveis ainda.

Fim...//...


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