quinta-feira, janeiro 12, 2006

MocambiqueOnline Blog

Estragaram a nossa pessoa (2)
Por: Elisio Macamo

A sociologia ensinou-me a desconfiar de muita coisa. Ao mesmo tempo, porém, acautelou-me a não ficar surpreendido por tudo e por nada. A espécie humana é curiosa e é capaz de tudo. Deus escreve direito em linhas tortas porque os homens insistem em torcer as linhas. Numa das minhas andanças pelo campo tive um reencontro inicialmente engraçado com um camponês. Durante a conversa que mantivemos ele contou-me que o chefe do posto administrativo que eu conhecera em ocasiões anteriores tinha sido afastado do lugar. Achei interessante. Perguntei porquê, embora já suspeitasse. Disse-me que tinha desaparecido dinheiro dos cofres do posto. Mesmo assim, a minha curiosidade aumentou.

Onde está ele agora? O camponês respondeu-me que o chefe de posto destituído por razões ligadas ao desaparecimento de dinheiros públicos voltara à administração distrital. Achei estranho. Perguntei se houvera algum processo disciplinar, embora já antecipasse a resposta. Não se sabe, disse o camponês, ao que parece é muito provável que não tenha sido ele a desviar os fundos. De qualquer maneira, a administração distrital achou por bem trazer o indivíduo de volta à sede. Comecei a ficar lívido, embora o pobre camponês não tivesse nada a ver com o assunto. Perguntei se ele se sentia à vontade sabendo que um indivíduo sem, aparentemente, sentido de responsabilidade estava à solta na administração. O camponês não perdeu a paciência, isso é coisa de sociólogo mal preparado.

Ele disse-me que a administração distrital não podia fazer mais nada porque o indivíduo em questão não era, originariamente, do quadro da administração. Não percebi e o camponês viu pela expressão na minha cara que os títulos académicos tinham chegado ao limite da sua utilidade. O chefe de posto destituído – "saneado" como dizia a Frelimo revolucionária – só podia continuar a trabalhar na administração porque quando foi indicado chefe de posto foi em comissão de serviço. Continuei a não perceber. É assim, explicou o paciente camponês, se a administração distrital expulsasse o indivíduo em questão as pessoas haviam de achar estranho. Porquê, quase que gritei. Bom, disse o camponês com o ar condescendente de quem se resigna perante a falta de imaginação dos citadinos, a ser expulso ele teria que ser devolvido à sua empresa inicial. Não vi problema com isso. O problema, prosseguiu o meu interlocutor, é que a empresa vai dizer: quando vocês vieram buscar aqui o nosso homem ele não era corrupto; o que fizeram com ele?

Fiquei sem palavra.

Das duas uma: Ou o camponês está a falar a partir de um sentido de cultura que não partilho ou então, mais tarde cheguei a esta conclusão, há sérios problemas com a forma como pensamos a noção de responsabilidade. Até porque acho bonita a ideia de responsabilizar empresas pela degenerescência moral dos seus empregados. Mas o que é bonito não é necessariamente bom. Muitas vezes até é mau. Mau mesmo. Quando vocês vieram buscar aqui o nosso homem ele não era corrupto; o que fizeram com ele? Como, perguntei aos meus botões, com concepções como esta introduzir maior responsabilização na acção política pública? De que maneira é que as populações prejudicadas por este chefe do posto administrativo podem pedir contas a um indivíduo que não actuou por conta própria, mas sim em resposta à má educação que lhe foi dada no novo emprego?

A partir daqui as coisas vão começar a aquecer, por isso peço atenção. O que dizemos apresenta quatro elementos que são constitutivos da realidade social. Primeiro, revela uma base comum de entendimento que nos permite economizar palavras. No caso da conversa com o camponês, a coisa falhou. Eu não sabia que não se pode expulsar alguém por má conduta, sobretudo quando esse alguém vem de uma outra empresa. Segundo, quando a base comum falha podemos recorrer ao facto de que o que dizemos fazer parte de um empreendimento conjunto – sim, "joint-venture". Estamos a falar para outras pessoas e temos que nos fazer entender. O camponês tentou. Terceiro, ao tentarmos fazer-mo-nos entender criamos a nossa própria audiência, muitas vezes a partir de formas concretas de fazer passar a mensagem. O camponês não se maçou com isto, pois julgo que ao meio da conversa ele chegou à conclusão de que eu era um caso perdido. Finalmente, o que dizemos subentende muita coisa, o que torna necessário um trabalho aturado de coordenação do sentido. Nem eu, nem o camponês estávamos ainda com pachorra para tentar isto. No próximo artigo vou tentar desenvolver isto mais um bocado e depois dar largas à minha imaginação.

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