Carta aberta ao Padre Couto:
Melhorar a base e alcançar a qualidade
1. A Universidade Eduardo Mondlane (UEM) tornou público que os seus cursos passam a ser feitos em 3 anos, o que difere dos 5 que sempre foi o período de duração da licenciatura. Nalguns cursos, os 3 anos eram reservados ao bacharelato, os restantes 2 à licenciatura e depois mais 2 para o mestrado e 4 para o doutoramento. Esta recente inovação dos 3 anos tem levantado alguma polémica e, pos isso, deve ser debatida, para além de que se trata de uma questão de interesse nacional. Polémica nacional.
2. Na verdade, tratando-se de uma decisão tomada a nível da maior e mais antiga instituição de ensino superior no país, as suas repercursões atingirão o país inteiro, em proporções diferentes (para mais) do que aconteceria se o mesmo tivesse sido decidido pelas privadas. A universidade pública, até devido ao seu tamanho, é a que abastece a maior fatia do mercado nacional. Maior fornecedor de quadros.
3. Logo, as opções que se tomam relativamente à sua vida devem merecer um período de reflexão muito mais aprofundado que as restantes (que também devem ponderar devidamente antes de tomar decisões, como é óbvio). Parece que não foi o caso, uma vez que, pelo que se pode perceber, a decisão acabou caindo repentinamente e como que uma surpresa junto do meio académico e intelectual. Reflexão não profunda.
4. Ao tomar conhecimento da medida, através dos órgãos de comunicação social, e tendo procurado saber quais os procedimentos prévios tomados, ouviu-se dizer, por via das más línguas, que o Magnífico Reitor não tem muito o gosto de ouvir o Conselho Académico e, neste caso, particular trouxe a decisão e apresentou como acto consumado contra o qual pouco ou nada se poderia fazer. Gestão não participativa.
5. Quando se toma uma decisão do nível desta, deve-se ter a certeza de que temos, pelo menos, a maioria da sociedade, ou dos intelectuais, ou dos pensadores, ou dos docentes universitários, ou seja do que for que interesse ouvir, do nosso lado. Se temos meia dúzia de colaboradores directos, ou amigos ou duas ou três pessoas, com interesse potencial em alcançar algum objectivo, próximos de nós, e o resto do mundo contra nós, temos a obrigação de recuar. Humildade.
6. O Padre Couto, filho de Nachingweia e irmào de muitos que derramaram o seu sangue pela libertação desta pátria, sabe, melhor do que muitos de nós, que não nos podemos transformar em inimigos ou adversários do nosso próprio povo. Não podemos combater aqueles a quem devemos servir. Com pressa de servir o povo, o Padre pensou em termos muito numéricos e quantitativos e nada qualitativos. Arrisca-se a prejudicar, com uma produção em massa de mediocridade, o seu próprio povo. Sabe que o enlatado faz mal à saúde, Padre. Antigo combatente.
7. Ao posicionar-se contra mais de 80% dos docentes da UEM e quase 100% dos intelectuais deste país, o Padre Couto parece estar sozinho numa questão onde deveria estar ao lado de todos. Daí o nosso apelo ao recuo, e por enquanto, à reflexão mais profunda. Adiamento.
8. A diminuição, Caro Padre, dos tempos dos cursos de licenciatura, em Moçambique, não é um debate novo. Não foi o Padre que trouxe esse debate, nem que o introduziu nos meandros do ensino superior no país. Sempre se disse que tinhamos uma formação superior pesada, antiquada, longa e muitas vezes distorcida dos objectivos que se pretende alcançar no fim do dia. Onde nunca se atingia o tal saber-fazer. Debate antigo.
9. Comparava-se a situação com a dos outros países, onde ao 2º ou 3º ano o indivíduo já é, normalmente, bacharel. Ao fim do tempo em que nós fazemos a licenciatura, os outros já são masters. Contava-se, até, com alguma graça, o facto de alguns de nós, ao chegarmos ás universidades de outros países levando apenas o título de licenciado e pretendendo fazer o mestrado, nos dizerem para entrar directamente no doutoramento – porque, com a carga que possuimos, na licenciatura, para eles já somos mestrados. Formação encurtada.
10. No entanto, meu Magnífico, no nosso país, a diminuição do tempo, por si só, não resolve os problemas. Solução leviana.
11. Os nossos semestres académicos duram pouquíssimo mais de 3 meses. Só se estuda com profundidade nos meses de Fevereiro, Março e Abril. Maio e Junho são meses orientados para os exames. Ou seja, o Padre Couto, ao reduzir o período de formação para 3 anos, está a reduzir a formação superior em Moçambique a pouco mais de 9 meses. Tempo útil curtíssimo.
12. A comparação a outros países que parece ser um dos grandes argumentos para se avançar com a medida é muito errada. Os países que se diz terem esse tipo de formação – África do Sul, Estados Unidos – têm as mesmas condições de ensino que as nossas? Colocando a questão ao contrário: O nosso país tem condições de ensino semelhantes as dos Estados Unidos? Claro que não. Então, não copiemos os modelos de países tão diferentes do nosso. Não transportemos modelos de ensino de países onde há mestrados e doutorados sem emprego, para um país onde não há professores dos níveis mais elementares. Nunca vi um licenciado a dar aulas na escola primária no nosso país. Nesses países – de onde estamos a copiar, e mal, o sistema – há doutorados a darem aulas na 1ª classe. Há manuais gratuitos, acesso à internet, laboratórios, livros, bibliotecas, excursões, viagens e visitas de estudo – tudo isso na escola primária. Não há alunos a estudar sentados no chão, em baixo de árvores. Comparação ridícula.
13. Com muita pressa, e quando perguntamos a colegas sobre as razões de tão precipitada medida na UEM, diz-se: É assim em todo mundo! Mas esquecemo-nos que, no tal todo mundo, não há professores de 12ª mais 1, 7ª mais 3, um processo de formação de professores que deforma mais os professores do que os alunos. A pressa é inimiga da perfeição.
14. Caro Padre, não podemos dizer que há falta de polícias e, acto contínuo, recrutamos 10.000 cidadãos, ensinamos a disparar uma pistola e uma AKM e colocamo-los no mercado, após uma semana de formação. Nem sequer dizer que há falta de enfermeiros e ensinar alguns milhares de homens e mulheres a dar uma injeção e colocar nos centros de saúde. Do motorista ao mecânico vai uma distância impossível de transpor só com o decurso do tempo. Nem com 50 anos de experiência um motorista pode ser um mecânico. A menos que o carro avarie todos os dias e aí teriamos um mecânico sem conhecimento científico, mas tão somente um curioso. O tempo de serviço dá experiência, e isso é muito bom, mas não dá conhecimento científico que se possa transmitir. E sobretudo não dá avanço na ciência. Deformação.
15. Os nossos formandos, após os famigerados 3 anos, até podem saber o básico e essencial na sua área. Mas nunca terão o conhecimento suficiente para trazerem avanço na ciência, darem luzes e pistas a outros colegas para trazerem mais valia e descobertas. Serão apenas meros reprodutores do básico que aprenderam. E quando teremos os cientistas moçambicanos? E quando estaremos ao nível de competir no mundo? Não queremos ser repetidores de afirmações, sem nenhuma criatividade, sem nenhuma obsessão pela pesquisa e pelo progresso científico e académico. Se hoje temos bons técnicos e bons quadros – e disso o Padre se pode orgulhar, pois faz parte do processo – deve-se aos 5 anos de licenciatura. Os 3 nunca experimentamos e nem sequer temos a certeza que trarão o sucesso que se pensa. Reprodutores mecanizados.
16. Todos os dias queixamo-nos de que os doutores de hoje possuem muitos problemas de formação. Escrevem com dificuldade, leem com dificuldade e mal interpretam os fenómenos que lhes são apresentados. Dificuldades actuais.
17. A base de formação da educação está cada vez mais frágil, em termos qualitativos, apesar dos numerosos progressos que fizemos a nível quantitativo com a construção de escolas, abertura do ensino ao sector privado e capacitação de um maior número de professores. Já temos escolas e professores, há ainda um trabalho gigantesco para elevar a qualidade. Qualidade fraca.
18. As revoluções sempre trazem algumas vozes contra. É normal. As grandes e profundas alterações trazem consigo muitas vozes reticentes, discordantes e críticas, muitas vezes baseadas numa análise simplista – até houve cientistas que foram mortos, nos tempos mais remotos, por terem apresentado teses científicas revolucionárias relacionadas com a terra, o sol ou a lua. Não pense o Padre que este artigo insere-se nas vozes do contra, daqueles que se acomodam num sistema e encaram as mudanças como processos de difícil adaptação. Não. Resistência ás mudanças.
19. Mas é óbvio que perante um processo de mudança, as vozes que se erguem contra podem situar-se em 1 de 3 planos: terem razão, não terem razão ou terem razão parcialmente, o que significa que a revolução deve ser feita mais tarde. Crítica permanente.
20. Sempre que se discutiu essa questão do formato dos nossos cursos superiores pocicionei-me do lado revolucionário. A favor das mudanças. Hoje, perante a ideia da diminuição do tempo da licenciatura continuo do mesmo lado. Do lado do Padre Couto. Simplesmente, perante o cenário actual da tal fraca qualidade, do facto de ainda nos encontrarmos num processo de complementar o 8 de Março (através do aumento qualitativo) é mais do que evidente que ainda não é o momento apropriado para avançar com a revolução. Concordo, mas não tão já, Padre. Momento não ideal.
21. Ainda não nos encontramos no momento certo para a mudança. Não que isso se vá prolongar indefinidamente, ou que se possa pensar que nunca haverá um momento ideal – ou que o óptimo nunca chega – nada disso. O nosso país encontra-se, ainda, num processo de crescimento, de afirmação e desenvolvimento científico e cultural. Claro que, não tarda muito, teremos um ensino de qualidade que nos permita fazer cursos superiores de 3 anos num processo que terá muitas das matérias já tratadas pelos alunos na 11ª e 12ª classe. Os que vão para Direito podem ter Introdução ao Estudo do Direito, Direito Constitucional, Administrativo ou do Trabalho nesses anos. São matérias que qualquer cidadão deve conhecer e, mesmos antes do ensino superior, é salutar que com elas tome um primeiro contacto. Na universidade aprende-se as matérias mais específicas e especializadas. Ensino direcionado.
22. O Padre sabe que a guerra pela libertação da nação não se fez com actos precipitados e irresponsáveis. Não se sabia que ali há um grupo de tropas coloniais e avançava-se de forma cega e imprudente só porque queriamos a libertação da nação. Fazia-se, antes, o reconhecimento do local, do número de inimigos, qual o armamento que traziam e quais as nossas capacidades e só depois de tudo ponderado é que se avançava. Só a maturidade e o conhecimento dos verdadeiros objectivos da luta aliados a muita calma, paciência e ponderação trouxeram a vitória.Responsabilidade.
23. As cadeiras que vão ser eliminadas vão para onde? Desaparecem pura e simplesmente? Alguém analisou os planos curriculares, com a profundidade necessária – e não tchapo tchapo, curso a curso, para saber quais as cadeiras que devem desaparecer? Algumas dessas cadeiras devem ir para o ensino secundário ou pré-universitário. O Padre contactou o Ministério da Educação para saber se vão contemplar tais disciplinas nessa classes? Se foram contratados professores? Ou foi feito um exercício Tipo Cozinheiro: Tira esta, esta, esta e aquela. Ficam só as principais. Não pode ser. A partir da 11ª, os alunos que vão para medicina, enfermagem, farmácia e outros curso afins deverão ter algumas cadeiras obrigatórias – que são as chamadas genéricas e que são dadas em todos cursos. Quer dizer, são as que passariam da universidade para o pré-universitário. Que se saiba, o Padre não se deu ao trabalho de tal exercício. São cadeiras que podem parecer desnecessárias, mas no fundo ajudavam os estudantes num exercício amplo de conhecimento geral e de cultura geral. Saber não ocupa lugar.
24. Conheci uma estudante sul-africana que nunca estudou nos bancos da universidade onde se encontra a fazer a sua formação superior. Quando chega a época dos exames, normalmente em Junho e em Dezembro, faz a matrícula nas cadeiras que quer e faz o exame respectivo. Não tem limite em termos de número. Faz o exame do número que quiser. Logo que for aprovada nas cadeiras todas do Curso, independentemente do tempo em que esteve a ser examinada, terá o seu diploma. A base são os créditos que permitem que o aluno seja considerado bacharel, licenciado ou mestrado. A universidade não se preocupa em ter os alunos sentados nas suas cadeiras todo o ano. Interessa-se pelos resultados e por isso é uma instituição aberta que utiliza o dinheiro das matrículas para pagar os docentes que corrigem as provas. Os alunos que terminem os créditos estarão preparados para entrar e competir no mercado de trabalho. Podiamos, por enquanto, introduzir esse sistema na UEM. Formação auto-didacta baseada em créditos.
25. Já se fala em greves silenciosas e em sabotagens não declaradas na UEM. Os docentes não vão sabotar porque estão a pensar neles, nem sequer porque não acreditam no modelo. Acreditam e gostariam que um dia ele fosse adoptado, seria bom para todos nós – os filhos dos docentes irão beneficiar-se com isso. Por isso, eles estão de acordo quanto ás vantagens do modelo. Mas ele não começa com a UEM sozinha na corrida. Deve envolver o ensino secundário e pré-universitário, os outros institutos profissionais e as instituições onde os tais profissionais deverão fazer um estágio prático, antes de avançarem para o mercado do trabalho. Trabalho conjunto.
26. Tenha calma, Padre.Estamos consigo, mas não se precipite. Teremos na UEM uma base de formação em 3 anos – o que até será muito bom. Mas não é ás pressas. Se tem boa vontade, trabalhe para melhorar a ensino desde a escola primária. Estabeleça convénios para que a UEM participe na formação ou capacitação dos professores que lecionam da 1ª a 4ª classe. Faça cursos específicos para melhoramento do nível dos professores, de forma permanente – para que saibamos que, na UEM, todo o ano há acções de ensino para professores não universitários. Inicie o processo de transferência dessas cadeiras para o pré-universitário. Ajude a transformar a (inaceitável) formação 12ª mais 1 ou a 7ª mais 3 em algo mais benéfico para o professorado em Moçambique, eliminando definitivamente a banalização de tão nobre profissão. Formação de base com qualidade.
27. Daí, o meu apelo para a observância da qualidade. Após décadas de independência, não se preocupe em correr para ter número, mas sim para ter qualidade, sob pena de resvalarmos para um abismo, onde as instituições de formação superior colocarão no mercado milhares de quadros sem qualidade e que, ao invés de contribuirem para o conhecimento trazendo novas e interessantes abordagens, tornar-se-ão cidadãos com um diploma nas mãos e nada na cabeça. Sem poderem ajudar-se a si próprios e ao país em que vivem. Qualidade, qualidade e qualidade.
28. Sabe, Padre, perguntei, há cerca de 6 meses, a alunos meus do secundário se conheciam Eduardo Mondlane, responderam: Já ouvimos falar, mas não estamos a ver quem é. A nossa academia tem que ser suportada por profissionais de qualidade, que sabem de onde vieram, onde estão e para onde vão. Correr não é chegar.
Jorge de Oliveira
Secretário-Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos
Mestrado em Ciências Jurídicas pela UEM
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